CÃO, simplesmente

Extrato:

Segundo minha mãe, éramos cinco irmãos; “uma linda ninhada!”, repetia frequentemente com ar saudoso e compungido, lá na longínqua aldeia onde nasci.

Ao sentir que a hora de nascermos se aproximava, explorou com minúcia as partes mais remotas e esconsas das cabanas do dono até encontrar recesso acantoado e recolhido para fazer o ninho.

Como, para ela, pontapé e vergastada estavam sempre prontos, quis poupar­‑nos a esses tratos, pelo menos enquanto pequenos. Sabia de experiência certa que, mais cedo ou mais tarde, seria também essa a nossa sina.

“Que seja mais tarde, muito mais tarde”, dizia para si mesma. Havia, para isso, que tomar providências para retardar o mais possível o nosso encontro com humanos e com tais padecimentos. E isso só seria possível se o amo não descobrisse os seus cachorrinhos. Tinha a secreta esperança de nos criar e nos enviar ao mundo a governar vida, antes do dono encontrar o bem camuflado aprisco que ela preparara para nós.

Os humanos, porém, têm artes inimagináveis para adivinhar os nossos pensares e intenções, e não se poupam a esforços para ofertar sofrimento a todo o ser que com eles se cruza.

O humano de minha mãe não tardou a perceber que ela havia parido os seus filhotes e a descobrir o esconderijo tão cuidadosamente por ela elegido e preparado. Debalde evitou, nesses dias, a vizinhança do dono, alimentando­‑se já noite cerrada e quando a casa ressumava sossego, e as saídas e regressos ao covil eram sempre sorrateiros, acautelando que não andava nenhum dos amos por perto.

Como o dono descobriu o abrigo, não sabe. Simplesmente, ele chegou de forma inesperada numa fresca manhã, mal passara um quarto de lua sobre o nosso nascimento, e sem palavras nem advertências chutou minha mãe, retirou do berço, um a um, os recém-nascidos e colocou­‑nos num cesto que consigo trazia. Minha mãe bem se tentou opor, mas as suas rosnadelas e obstinada resistência foram vencidas com murros e biqueiradas.

Apesar de ainda dorida e debilitada da parição, vendo­‑o afastar­‑se com os seus bebés, fez uma derradeira e desesperada tentativa para o deter: atirou‑se contra o dono colocando as patas dianteiras nos ombros dele e, fincando firmemente as patas traseiras, tentou impedir o seu avanço, sem nunca descurar redobradas cautelas para não lhe infligir malefício algum.

Ela bem sabia que rebelião contra humano é ato sacrílego. “Um gesto que sai sempre demasiado caro”, repetir­‑mo­‑á diversas vezes mais tarde.

E saiu­‑lhe caro, muito caro!

Um empurrão, seguido de forte pontapé no abdómem provocou­‑lhe uma dor lancinante, que só aliviou e desvaneceu quando caiu inanimada.

Ao retomar consciência de si e da situação, sem saber o tempo que, entretanto, decorrera, tentou levantar­‑se, espevitada pela perceção de perigo que recaía sobre os seus cachorrinhos. Por cada tentativa de movimento, fortes picadas de dor percorriam toda a arcada das costelas estendendo­‑se em estrias dolorosas a todo o ventre. Mal levantando a cabeça, sondou o horizonte com a vista, farejou as aragens, atentou nos mais leves sons.

As suas crias haviam desaparecido!…

Com as parcas forças que a aflição de mãe arrancou do seu fraquejado e doído corpo, pôs­‑se em pé; cambaleante, arrojou‑se terreno abaixo cheirando o rasto do seu dominador; pérolas de sofrimento saltavam­‑lhe dos olhos e escorriam­ pelo focinho; cada passada provocava­‑lhe um ganido de dor.

Sentimentos de desespero e terror foram‑se apossando dela à medida que os receios passavam a suspeitas e as suspeitas a certezas quanto às verdadeiras intenções do irascível e impiedoso dono.

Como temia, o rasto desembocava na ribeira, mas nenhum sinal do seu mal amado humano. Narinas fariscando os ares e orelhas guichas, tentou captar o mais leve odor ou ténue gemido que lhe indicasse a localização dos filhos. Nenhum som para além do brando marulhar das águas. Captou, porém, eflúvios meio indefinidos que pareciam apontar para os seus tenros cachorros; eram cheiros quase impercetíveis pairando sobre as águas e vindos de jusante do arroio.

Desceu ao longo do regato, vencendo com dolorosa dificuldade as altas ervas que lhe tolhiam os passos.

Parou e o seu coração parou também. Meio camuflado pelos juncos que se destacam na margem, um diminuto e fulvo dorso oscilava ao sabor da leve e mansamente ritmada ondulação das águas.

Um dos seus bebés!

Atirou-se à água e, ignorando as dores que lhe trespassavam a carne, conseguiu retirar o pequeno corpo, pegando­‑o delicadamente pelo cachaço com a mandíbula e colocando­‑o no lenteiro que bordejava o ribeiro.

Hesitou entre sair do arroio e reanimar o corpinho inerte e já meio frio ou procurar os restantes filhotes por entre as ervas. Optou por continuar as buscas das outras crias temendo que alguma ainda se debatesse contra a tormentosa asfixia das águas.

Notou que era menos doloroso nadar que andar e apressou­‑se na inspeção diligente das margens; foi descendo junto à orla esquerda, sem descurar um exame atento ao outro lado do corgo.

Um após outro, entre os junquilhos e embudes dos baixios, foi encontrando os minúsculos e fofos corpos dos seus bebés, frios, flácidos, sem o menor sinal de vida.

Havia já retirado três, e começava a sentir­‑se desfalecer de acracia e prostração, quando descobre que algo se agita num tufo de tifas no meio do córrego.

Minha mãe, tomada por desconsolo total e em pleno desespero, já não sentia outro estímulo senão deixar­‑se arrastar pela corrente e permitir que águas misericordiosas afogassem as suas mágoas. No entanto, ao adivinhar uma das suas crias entre aquele embaraço de ervas, sentiu­‑se retomada de forças, as forças bastantes para salvar um dos seus bebés.

Apressou­‑se nessa direção. Encontrou­‑me enredado na ramagem que as tifas retinham e sustentavam à tona de água.

O sufoco da água que nos pulmões roubava espaço ao ar, e o frio que se ia apossando do meu corpo empurravam­‑me para a semiconsciência; contudo, segundo sustentava minha mãe, o meu instinto batalhador ainda sustinha as narinas fora de água e mantinha as diminutas patas num lento e exausto pedalar.

Arrastou­‑se e arrastou­‑me até à margem; escolheu uma touceira de panasco seco e aninhou­‑me nele.

Ainda percorreu lentamente uma certa distância ao longo do ribeiro perscrutando cuidadosamente as duas margens, tufos de ervas ou remanso em parcel, mas do meu quinto irmão não mais encontrou sinal algum.

Revisitou as restantes crias, depositadas na borda da água; retirou­‑as mais para terra, revirou­‑as e farejou­‑as: a vida abandonara­‑as em definitivo!

Quando regressou para junto de mim, encontrou­‑me inanimado e frio. Julgou­‑me igualmente perdido, segundo me confessou­ tempos depois quando me recontou a desventura do meu nascimento. Prostrada e desconsolada da vida, enroscou­‑se à minha volta e perdeu a consciência em indulgente sono ou desmaio, não sabia ao certo.

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