NOTA: Edição esgotada na Editora e no mercado. Exemplares remanescentes poderão, ainda, ser adquiridos neste sítio ou na papelaria Condes em Abrantes.

Terra Prometida (extrato inicial)

Por aqui escoo as tardes mais soalheiras, pondo em pergaminho vagas memórias, com espaçadas interrupções para descansar a cansada vista contemplando o sempre verde valejo que se espraia deste outeiro até às faldas da serra de Pêra.
Aos meus pés, a pequena aldeia que vi nascer e ajudei a criar. Meia dúzia de casebres, eternamente provisórios, construídos à pressa para proteger dos perigos da floresta, povoada de feras bestas e espetros temíveis.
Percorro com os olhos e a imaginação os caminhos, os campos e os recônditos dos bosques já que as pernas não consentem grandes andanças, corroídas pelas incontáveis léguas palmilhadas ao longo de uma mão cheia de alqueires de anos e tolhidas pela artrose de longos, frios e húmidos invernos; os duros invernos serranos.
Tão intensa e breve a vida, porém tão longínquas as vivências que aqui narro e já assaz esbatidas nas brumas das recordações…
Era o ano do Senhor de 1132, ano 5090 da criação do mundo.
Uma chuva gelada, impelida por vento rebelde, fustigava­‑nos a cara e enregelava-nos o corpo. Desde que deixáramos o rio, que o mordomo apelidara de Paiva, as veredas haviam desaparecido e só raro trilho de animal selvagem interrompia o contínuo matagal que cobria o solo da floresta.
A progressão era lenta e penosa, ainda mais retardada pela persistente teimosia dos animais em abocanhar alguma que outra fêvera mais verde ou tenro rebento. Avançávamos por campos encharcados e enlameados ao longo de uma pequena, mas transbordante, ribeira.
Ziguezagueávamos, havia uma boa hora, embrenhados na densa e musgosa floresta de carvalhos centenares, com o solo juncado de ramos e toros podres por entre os quais cresciam agressivos tojos e impenetráveis silvados quando chegámos à confluência de dois córregos bem nutridos pelas recentes chuvadas.
O mordomo vira­‑se para nós e sentencia com a pretensão de um toque de humor, mas onde se podia adivinhar certa comiseração:
‒ Chegaram à terra prometida!
Entreolhámo­‑nos perplexos e assustados.
Desde que nos apartáramos do rio Paiva só tínhamos pisado terreno alagadiço ou pantanoso, afora esporádicos amontoados de penedos cobertos de musgos e heras. A floresta era contínua e cerrada apenas interrompida por raros lenteiros ou clareiras de fetos secos onde invariavelmente chapinávamos água ao atravessá­‑los. Se não fora o predomínio de agigantadas lenhosas ainda desnudadas e meio entorpecidas do longo inverno, a escassa claridade do dia nimboso mal chegaria ao solo.
Esforçando­‑se por aparentar alguma resolução e alento, tio Thomaz repostou:
‒ Parece haver pasto abundante para o gado, mas não vejo um palmo de terra mais enxuta para erguer tenda.
‒ Haverá ‒ retorquiu evasivamente o feitor. ‒ Já são semanas de farta chuva e os terrenos estão ensopados; mesmo estes ribeiros que agora extravasam por todos os lados são facilmente transponíveis durante grande parte do ano. Por mim, tenho de regressar pois em breve o dia finda, e, quanto a vós, recomendo montagem presta do acampamento para passar a noite que esta floresta está assolada de lobos e ursos; correm o risco de ao acordarem não terem uma só cabeça de gado viva, e sorte será se vos pouparem. Amanhã atravessem esta ribeira e, para lá deste fojo e daquele denso arvoredo, encontrarão um cerro mais livre de água e de árvores ‒ enquanto falava ia apontando para a outra margem do córrego indicando uns terrenos alagados onde tufos de fenos altos e esparsos arbustos se destacavam; uma orla cerrada de árvores estendia­‑se para lá destes pauis, subindo uma suave encosta até se perder na névoa que tolhia o horizonte. E o mordomo prosseguia: ‒ Este local onde a ribeira é mais ancha será o parcel mais fácil de cruzar, embora o caudal que agora leva vá exigir cuidados redobrados. Escolham bem o trajeto na outra borda pois terão de atravessar uma zona pantanosa, camuflada por emaranhado panascal, que poderá tragar as bestas mais afoitas. Todo o terreno, cerca de meia légua à nossa volta, faz parte da quinta. Elejam o melhor local para instalar as primeiras construções e estruturas. Para já, apressem­‑se a preparar uma cerca de ramos por causa das feras que já devem andar por aí a farejar os animais. Tenho de regressar a Caria que se faz tarde. Voltarei depois para dar mais instruções e indicar os limites exatos do casal.
Sem mais delongas, prendeu a arreata da mula que trouxera de Caria, entretanto alijada da sua carga, na cornija da albarda, deu meia-volta ao cavalo e desapareceu por entre o primeiro espessar da mata.
Em choque os adultos, assustadas as crianças, nem um só monossílabo de resposta ou despedida saiu do grupo que restava estático vendo­‑o afastar­‑se.
Decorrido um longo momento e tentando recuperar o controlo da situação, tio Thomaz desabafou para si, mas entendido por todos: «Terra prometida! É mas é uma terra de degredo, um lamaçal!»
Perdidos no meio da densa floresta, instigados pelo intimidante prenúncio do mordomo, apressámos o levantamento de uma tosca tranqueira de ramos para conter os animais, aproveitando um meandro da ribeira para reduzir o perímetro a proteger.
Do lado mais afastado ao curso de água, em cômoro mais escorrido da clareira, as mulheres prenderam nas árvores algumas peles para servirem de abrigo para a noite e desunharam‑se para acender uma fogueira.
Tinham trazido de Caria de Susã um caco de brasas aconchegadas em cinza. Não foi fácil, porém, encontrar uma mancheia de panasco menos húmido para iniciar o fogo. Abundavam ramos e troncos caídos pelo chão da floresta, no entanto meio apodrecidos e chumbados de água. Com esforço e aferro lá conseguiram avivar a fogueira, primeiro hesitante e frágil, depois, a custo, foi ganhando confiança e vigor. Arrebanharam todos as chamiças e franças menos encharcadas que encontraram pelas redondezas e, ao deitar, era uma bela fogueira que fazia fumegar as nossas vestes ensopadas enquanto rodávamos, bem próximos do lume, como bácoro em espeto.
Salvou­‑se a farta ceia com pão fresco, queijo e azeitonas que trouxéramos de Caria. Meio sentados e meio deitados, com umas simples peles a proteger da chuva, tiritando de frio, apertámo­‑nos uns contra os outros à procura do calor aconchegante dos corpos mais próximos.
Os dois cães estavam aninhados entre os nossos pés e a fogueira, cada um preso a uma árvore; competia­‑lhes dar o alerta de perigo ou ameaça, mas não convinha que se aventurassem na floresta com risco de serem apanhados por esfomeada alcateia ou urso errante.
Afora as crianças, ninguém pregou olho, apesar do cansaço de todos. O frio, a chuva, o vento, os apavorantes sons da noite, o mar de negro breu que nos envolvia, espevitavam o medo e alimentavam a insónia.
Forcejei por dormitar um pouco e quando já balançava entre consciência e inconsciência, o alvoroçante e nervoso ladrar dos cães colocou­‑me, colocou­‑nos, em sobressalto.
Do fundo da floresta uma interlocução de uivos pôs‑me os cabelos em pé e um áspero arrepio percorreu­‑me cada polegada de pele.
As ovelhas, inquietas, começaram a balir; os equídeos, orelhas bem guichas, relincharam agitados; as vacas, com os olhos esbugalhados, levantaram­‑se em alerta.
Tio Thomaz e tio Ruy ergueram­‑se de pincho e enquanto um desprendia os cães das árvores, sem lhes libertar a corda, já o outro estava de forquilha na mão. Manoel e Berthalomeu prontamente lhes seguiram o exemplo e pegaram na primeira ferramenta que encontraram. Fredericus ainda hesitou, visivelmente assustado e olhando para nós; mas era homem e avançou para a frente da batalha, ou melhor, para a retaguarda de tio Thomaz.
As mulheres arrebanharam­‑nos a nós, crianças, enfeixando‑nos bem apertados. Eu, com dez anos, nem sabia ao certo se havia de ser homem ou criança; optei por ser criança agarrando­­‑me bem a minha mãe e a Violante, não sem antes colocar a minha moca bem à mão de pegar.
A cantilena uivante foi­‑se aproximando até que um forte uivo, a poucos passos, nos gelou o espírito e eriçou a pele do corpo. Thomaz apressou­‑se a vir até nós para nos sossegar:
‒ Estão do outro lado da ribeira. Com esta corrente não a conseguem cruzar; mesmo que algum se atreva a saltar empurrámo­‑lo logo para a água. Estamos entre o corgo e o rebanho; não se preocupem, nenhum passa. Avivem a fogueira.
“Nenhum passa!?” Magicava eu. “E se descobrem uma passagem mais acima ou mais abaixo? Pontes por aqui, no meio deste deserto de gente, não deve haver, no entanto, à tarde, reparei que esta ribeira é formada por dois arroios que se ajoujam aqui; esses ribeiros são bem menos largos; um lobo de um pulo não os atravessará? Certamente não, o terreno entre os ribeiros também estava inundado; os dois cães são valentes; e dizem que os lobos evitam a gente, pelo menos quando há muitas pessoas; ora nós somos muitos…”
 Com estes pensamentos tentava sossegar­‑me, sem, contudo, estar seguro da sua solidez.
O desafio entre as duas hostes manteve­‑se por intermináveis minutos. Via olhos a brilharem, aparecendo e desaparecendo, no outro lado da ribeira.
Notória inquietação dos dois lados.
Numa tentativa de sair deste impasse e de o decidir a nosso favor, tio Thomaz deu instruções para gritarmos todos ao mesmo tempo: “à coa, à coa!”
Gritei a plenos pulmões, gritámos a plenos pulmões. Por cada grito mais se me riçava todo o coiro do corpo; os cães, açulados pela nossa gritaria, acompanhavam com um aulir concitado pelo frenesim da disputa; até a cabrada se quis juntar a esta algazarra com um nervoso e matraqueado berregar.
O barulho do lado de cá da ribeira, que ecoava na calada da noite, emudeceu o uivar do lado de lá. Quando as ondas do nosso alvoroço se perderam no vazio da floresta, o silêncio que se adensou tornou a escuridão mais espessa e as débeis sombras que a mortiça fogueira projetava pareciam ganhar vida e formas assustadoras.
Os momentos silentes que se seguiram alongaram­‑se opressivos e exasperantes até serem lacerados por novos uivos, mas agora esvaídos e tristes de malogro, lá longe para os lados da serra.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *