PENEDO dos CORVOS

Capítulo 1

Guardador de Vacas

Longo tempo guardei para mim o improvável que vivi. Temia o descrédito e o gracejo, como sempre acontece quando a realidade se atreve a sair do trilho da comum razão.

É uma história simples de menino…

Simples? As histórias de meninos são sonhos; os sonhos nunca são simples, trocam­‑nos sempre as voltas. Claro que os grandes não sabem, perderam a fé no sonho e sem sonho mingua o alento e os horizontes. Mas aqui há um menino… e sonho; sonho de um passado que há de viver e de um futuro que rememora.

Ia à escola e guardava vacas. Considerava­‑me um grande guardador de vacas: vaca minha não ia ao milhão do vizinho nem saltava para a ferrã dos campos que orlavam os caminhos. Os grandes ainda não me consideravam gente, todavia as vacas obedeciam­‑me como soldado ao seu general.

Até aos estranhos eventos que vou narrar, sempre fui guardador de vacas. Digo “sempre”, mas esse sempre representava menos de uma arroba de meses. Era, porém, todo o tempo de uma vida que alhures perdera o passado. Meus pais não sabiam ao certo, mas devia ter uns sete ou oito anos quando vim ao mundo. É estranho, não é!? Estranheza partilhada por todos: meus pais, vizinhos e eu próprio. Mesmo depois desse arcano me ter sido revelado, tão singular segredo permaneceu, por longo tempo, acantoado no mais silente de mim mesmo.

Estranho e perturbante! “Quando era pequeno…”, diziam, por tudo e por nada, meninas e meninos da minha idade. Ora, eu nunca fui pequeno. Muito pequeno, quero dizer. Era uma espécie de aleijado. Não que me sentisse desamorado, mas faltava­‑me um anteontem para me sentir dentro da norma. Há quem esconda em embuço de capucha ou dentro de mangas braço faltoso ou disforme. Eu escondia o meu aleijão de não ter passado num encolher de ombros envergonhado e silencioso.

Mesmo minha mãe, quando as comadres se embeveciam a falar da meninice dos seus filhos, iniciava uma calada e discreta retirada. O seu filho nunca fora infante!

Sempre receei o descrédito de quem me ouvisse ou lesse, remetendo para o sótão de minha mórbida fantasia os extraordinários acontecimentos que, por fim, decidi pôr em rabiscada caligrafia. Na verdade, desde novo que os adultos me consideravam sonhador e de imaginação fácil, não dando grande crédito às histórias das minhas vivências de um passado que eu não tinha.

Eu próprio duvidava, por vezes, das minhas certezas. Com efeito, como podia ter eu memórias daquilo que ainda não se libertara do domínio do desejo e do porvir? Como era possível o hoje recordar o amanhã? E surpreendia-me, no limiar da lucidez, como observador simultaneamente dentro e fora de mim numa ténue e diáfana fronteira entre o eu e o outro, num tempo que não era linear, em que o presente representava a concomitância do passado e do devir, um futuro já vivido. Mas este hoje não são os tempos de agora que correm indistintos e velozes, antes um passado que sedimenta no fundo da mais funda cave de recordações, mantendo um obscuro e incerto equilíbrio entre uma realidade imaginária e o imaginário de uma realidade vivida.

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