O Saldo da Vida
Os cães são como as pessoas, têm as suas cismas. A Runa não é diferente. Mal chega ao Ribeiro, abandona a frente do rebanho e desata a correr para casa. Dir-se-ia que tem saudades da minha Zezinha. Até nem são muito dadas. Certo é que vai a correr, pouco se demora, e logo volta para ajudar a acomodar o gado no curral.
Porque faz isto não sei. Diz a Zezinha que chega, fareja-lhe os pés, dá duas voltas em torno dela rabiando de contentamento como se a não tivesse visto há vários dias, e volta a sair de casa, sem um latido. Pelo menos a minha Zezinha fica prevenida da nossa chegada.
E estamos a chegar. E ela já está prevenida. E lá está ela a espreitar pelo janelo enquanto percorremos a ruela que sobe do arroio. Gosta daquele janelo. Diz que lhe permite ver uma nesga de vida. Pessoas que passam, bichos que andam e voam, plantas que crescem e florescem.
Mas também serve para espiar a minha chegada. E ela já está prevenida. E já sabe que estou a chegar. E observa-me pelo janelo através do vidro fosco de sujo e fumo. Não que eu veja que ela me vê. Só noto um vulto. Mas sei que ela gosta de ficar ali prantada a olhar para as coisas, ou para o vazio…, e a ver-me chegar.
Espero que não esteja a preparar mais uma encenação.
Coitada, agora deu-lhe para este aferro. É a vesânia do vinho. Até era mulher trabalhadora e companheira. Depois começou na vinhaça. Tenho o pipo aferrolhado a sete chaves, mas deixa nome no rol de todos os taberneiros.
Bem tento pô-la na ordem. Ralhos não lhe têm faltado. Chora, pede perdão, promete… Esta tineta, porém, está acima do seu querer.
Ultimamente anda com estas ideias…, quer finar‑se.
Tentou no poço da Regada, apenas virei costas. A Runa é que lhe valeu. Deu o alerta. Ladrava aflitivamente.
Que trabalheira me deu para a tirar do fundo do poço! Não fora ter cegonha montada, e certamente se afogaria enquanto buscava escada ou pedia socorro. Lá a convenci a meter-se no balde e a agarrar-se firme ao varal do engenho. Não foi difícil convencê-la. A aflição das golfadas que engoliu ajudou na argumentação. O difícil foi içá-la. Mas lá a fui puxando, a pulso, e já cá em cima quase a larguei, extenuado, quando se lançou em desespero para se agarrar ao cairel do poço. Garantiu que afogada nunca mais.
Os mimos que lhe dei a seguir ainda cevaram mais o desatino. Até canja lhe fiz. Mas quanto mais a mimava mais desalentada parecia.
Não tardou a pendurar-se num caibro da sala. Mais uma vez foi a Runa que a salvou. Foi à frente, como sempre, mas logo voltou latindo em desespero.
Tive um pressentimento. Corri. A cadela corria adiante. Eu corria atrás. Na subida da Fontinha tinha quase os bofes de fora, mas corria, corria.
Descobri-a a espernear. A pobre diz que sentiu dores terríveis quando a corda lhe trilhou a pele. Deixou-lhe marcas até hoje.
E já tentou esganar-se segunda vez. Desta feita, contudo, já foi mais cautelosa e colocou um lenço da cabeça a proteger o pescoço. E em vez da cadeira utilizou um banquinho pequeno, altura de palmo.
Ali esticada até tocava no chão. Parecia uma bailarina em exercício de ponta dos pés. Com o lenço, foi quase só a aflição do sufoco, confessou mais tarde.
Desconfio que espera até ver a cadela ou ouvir a chieira do portão da quintã para se lançar da cadeira. Mas pode dar para o torto. Posso não chegar a tempo. Tenho de a andar sempre a vigiar…
Gosto da minha Zezinha; a paciência, porém, começa a ceder.
Hoje despertou estranha. Deduzi que estaria nesses maus dias.
“Olha, Jaquim, acordei com umas ideias esquisitas. Tentei deixar de beber. Quase três dias sem provar pinga. Mas não dá. Não consigo. Dou cabo da minha vida e da tua. Tenho de tomar decisão séria”.
Que ideias e que decisão é que não disse. Bem tentei sacar alguma coisa. Insisti. Mas nada. “Deixa pra lá”, respondia fingindo enfado.
À cautela, pela manhã, ainda fiquei a fazer uns trabalhitos no quinteiro. De tarde, tive mesmo de levar a cabrada a almargem.
Ora aí está ela pendurada, novamente! Bem me olha de esguelha. Parece suplicar.
Zezinha tem razão: esta vida não leva a lado nenhum. Quando a dor e a infelicidade superam o prazer e a alegria, a vida tem saldo negativo. Não vale a pena ser vivida. E é-lhe penosa, a vida! Merece sossego, a minha Zezinha.
Vou voltar ao aprisco das cabras; deixá-la acabar o que começou…
A Runa prefere ficar. E para lá está em choroso e triste cainhar.
A MÃO AVARA E A DOCE MENINA (Conto de Natal)
O homem, curvado no amparo de tosco cajado, calcorreava o sendeiro com passos arrastados e rumo incerto.
O sol ameaçava recolher-se por detrás do recorte dos montes e ele sem vislumbrar sinal de povoado no vasto horizonte. Perdera-se, decerto, nos atalhos da serra, pensou.
É verdade que adormecera amolecido pelo aconchego de penedo soalheiro. Havia duas noites que mal pregara olho espicaçado pelo frio e a fome. O bafejo cálido de um límpido dia de sol em mais de uma semana de bruma fria e cerrada fora tentador. Tirara boa desforra do sono, dormindo até uma fresca aragem lhe provocar desagradáveis arrepios ao longo do corpo. Acordara quando a obliquidade já tornava débeis os raios solares que cruzavam o planalto formando alongadas sombras. A noite não tardaria.
O viajante voltou a perscrutar, ansioso, o horizonte em busca de mancha negra de casario, mas só descortinava o cinza das penedias por entre o mar verde-escuro dos pinhais. Pareceu-lhe, contudo, perceber uma ténue coluna de fumo voluteando na brisa do entardecer. Dirigiu o seu passo lento nessa direção e não tardou a ver, lá mais para o vale, uma difusa névoa em cogumelo formada pelo esfumaçar das lareiras. Ordena aos pés cansados e doridos que se apressem. Chega ao fundo da aldeia quando o dia já não é dia e a noite ainda não é noite.
Boa hora para pedir uma esmola, pensa o transeunte: pessoas e animais aproveitam as últimas sobras de luz para se recolherem em casa e nos currais. No casario, adivinha o crepitar do lume pelo fumegar das chaminés e a ceia em andamento pelos cheiros que se libertam por portas e janelas pobremente calafetadas. E o crepúsculo disfarçará o seu aspeto andrajoso…
«Uma malguinha de caldo por alma de quem lá tem»; «uma esmolinha e que Deus a abençoe»; «uma codinha de pão, por Deus e pelas almas»…
Era boa hora, mau dia, porém.
As mulheres estavam na sua azáfama das rabanadas, sonhos, azevias, arroz-doce…
‒ Vai lá ver quem é, ordenavam as mães à enfarruscada criança que estivesse mais por perto.
‒ É um pedinte…
‒ Diz-lhe que hoje não dá…
Já os homens surpreendidos no arrumo e trato do vivo, limitavam-se a exclamar “ó homem de Deus, ainda nem entrei em casa…”, confirmando a negativa com um abanar de cabeça.
Quintã a quintã, porta a porta, já percorrera grande parte da aldeia e nem um pequeno naco de pão para amenizar o segundo dia de pleno jejum. A noite caíra negra sobre o povoado apenas deixando difusas sombras debaixo de um céu estrelado. Uma humidade fria, prenunciando farta geada, entrava-lhe pelos rasgos das vestes puídas.
“É melhor pensar em abrigo, que mais uma noite de barriga vazia parece coisa certa”.
E a tentação recorrente invadia-o insidiosa, insistente, em desespero. Bastava deixar que a sua opípara mão avara socorresse a sua mão pedinte. O bolso da ganância tinha ouro bastante para alimentar e reconfortar fartamente por um ano o seu corpo sofredor.
E, mais uma vez, esteve na iminência de ceder.
Mas logo foi sustido pela amarga lembrança do pobre homem encontrado defunto, de fome e frio, na berma da estrada e pela penitente sentença do santo homem: “mendicante serás até te ser revelado um coração inocente e compassivo que te liberte da avidez da tua alma”.
Os pés cansados e cobertos de chagas do mendigo não conseguiam acompanhar os raros lampiões que cruzavam as ruas e que apressavam o passo para se furtar àquela figura repugnante e suspeita. E as portas fechavam-se ligeiras à sua frente deixando-o a tatear as pedras da calçada.
Mais uma bruxuleante luz se aproximava…
Era uma pobre criança que soltou contido grito de medo ao ver um farrapo de gente destacando-se da escuridão.
‒ Não te assustes, apenas sou um pobre de Deus pedindo uma esmola ‒, sossegou o esmolante, mas já se afastava ao ver a criança amedrontada. Amedrontada e de aparência miserável: descalça e maltrapilha como ele. Se não se denunciasse, seria ele quem daria esmola a esta desafortunada menina que denotava padecer tantas carências quanto ele. Tinha, porém, uma expiação a cumprir, e já seguia caminho…
‒ Senhor pobre…, porque anda a pedir assim de noite? Está tanto frio e é a hora da ceia de Natal!
‒ Hoje a fortuna não me bafejou. Nem um cigalho de esmola recebi. Mas tens razão, menina, está muito frio. Não devias andar na rua assim tão tarde. Estás a tiritar de frio.
‒ Fui levar a ceia a minha avó que está acamada. Em casa tenho uma grande fogueira para me aquecer. Olhe, podia vir comigo. Também se aquecia e pedia à minha mãe para o deixar consoar connosco.
‒ Tens um lindo coração… Todavia, teus pais não aceitariam que entrasse em tua casa. Não vês a minha aparência?
‒ Aceitam. Eu peço-lhes. Eu suplico. Têm de aceitar…
‒ Então, acompanho-te até à porta de casa. Se teus pais tiverem uma fatia de pão, agradeço, pois é grande a míngua que padeço, mas não vou entrar. Não quero que teus pais se aborreçam contigo.
‒ Não se zangam. São pobres, mas gostam de me ver feliz.
Pela porta esburacada, o mendigo bem ouvia vozes em despique: uma voz meiga de mulher e uma voz insistente e suplicante de mocinha. Quis virar costas, não queria dar incómodo. A menina, contudo, merecia um agradecimento. Não tardaria a vir comunicar a recusa. Seria indelicado desaparecer sem se despedir e queria dizer-lhe que aquele gesto, aquela tentativa, já lhe acalentara a alma.
E a menina veio. Veio a correr, e do alto do patim gritou com entusiasmo para a sombra encolhida e envergonhada ao fundo das escadas:
‒ Venha, suba! Eu não disse?
A mãe da menina desfez-se em desculpas. Caldo e pão negro de centeio têm cabonde. Mas é uma casa de pobre: só há uma posta de bacalhau a dividir por todos; era sobretudo para dar gosto às couves e batatas na cozedura. Mas já colocou mais um ovo a cozer…
Foi a mais deliciosa e acolhedora ceia de Natal que o mendigo podia desejar e esperar. E já se preparava para deixar aquela generosa e feliz família em sossego para a noite, quando o pai da menina lhe diz que ia preparar enxerga de palha em canto da ucharia. Bem tentou declinar a oferta pois não queria dar mais incómodo e já levava consigo a preciosa vivência de uma singela e feliz ceia de Natal que só encontrava paralelo nas memórias da sua infância.
E no conforto da cama feita com braçado de palha nova, o vagabundo sentia, pela primeira vez em largo tempo, a felicidade de uma noite de afeto e um afável sentimento de ter encontrado o tesouro que procurava, enquanto revia a trágica história que dera origem à sua penosa expiação.
Apesar de ser agricultor abastado, senhor de vastas propriedades, despedira rudemente um vagabundo que lhe batera à porte, em gélida noite, a pedir abrigo e cibo de pão para mitigar a fome. Nem abrigo nos seus celeiros e palhais, nem as côdeas do açafate que atirava aos porcos. O pedinte, corpo frágil e vestes em farrapos, bem lamuriou a sua precária condição, mas o avaro lavrador manteve-se surdo a súplicas e escorraçou-o sob ameaça de lhe açular os cães.
E um servo que pela fria madrugada do dia seguinte se dirigia ao casario do rico proprietário deparou-se com o desventurado indigente caído na berma do caminho, já sem vida e alvescido pela copiosa geada que cobria o seu corpo e os campos em redor.
Num remoque de arrependimento, o lavrador corre a conselho de virtuoso eremita, guardião de pequena ermida que farolava o alto da serra.
O santo homem ouve-o atentamente e perscruta a sinceridade do remorso que enegrecia a alma arrependida.
– Vai, sentencia o anacoreta, vende a tua melhor várzea e entrega o produto da venda à guarda da tua mão avara; depois percorre montes e vales, esmolando, apenas com o sustento da tua mão pedinte. Assim lembrarás em cada dia de remissão que por cada mão fechada na sua opulência muitas outras mãos se estenderão vazias e famintas. Serás penitente, e o bolso abastado espicaçará o teu estômago vazio sem lhe poder valer, até que um inocente e generoso coração amacie e liberte o teu espírito ávido e empedernido. Só então poderás volver ao conforto da tua casa e à abastança das tuas herdades.
Manhã bem cedo, a menina acorda, desce as escadas a correr ao encontro do seu mendigo.
Mas nenhum sinal de pedinte. Em seu lugar, apenas uma bolsinha de pano e dentro um generoso punhado de moedas de ouro que o pai da menina logo avalia bastarem para mercar vasta courela capaz de garantir pão, de colheita a colheita, na mesa da sua humilde família.
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