RELATÓRIO do REGEDOR

Capítulo 1

Havia decorrido um penoso e triste mês de luto após o falecimento de meu avô paterno. Se um grande pesar ainda enleava a família por pessoa tão estimada, já o nojo social se considerava cumprido sem o risco da usual recriminação de estarem “esfaimados pela herança” ser lançada pelos invejosos dizeres que costumam percorrer a aldeia em quejandas situações.

As partilhas começaram a ser assumidas e formalizadas, e o casarão patriarcal a ser esvaziado de móveis e memórias.

‒ Há para lá umas gavetas com papéis… tu, como és estudado, vai lá amanhã ver se algum tem interesse e merece arquivo ‒ determina meu pai, certo fim de tarde, após mais um dia de avaliações e divisões.

“Ter filho estudado” era ponto de grande entono para o aldeão; e meu pai, ufano, tinha o informe sempre à mão para o deixar cair aqui e ali a pretexto de tudo e de nada.

Fazer filho doutor exigia­ ao montesino grandes sacrifícios e investimento multiplicado, não raro impondo a venda de leira grada ou derribar pinhal em idade de resinar.

Era, porém, a par da ida para o Brasil, expressão maior do inconformismo contra uma vida sem horizontes, feita de labutas infindas, onde a miséria estava sempre à espreita em cada intempérie que arrasasse as colheitas, moléstia que dizimasse o gado ou enfermidade que tolhesse para o trabalho.

A mesa, com as gavetas em questão, era uma antiguidade de castanho, carunchosa e desmazelada, mas com robustez bastante para servir mais uma geração se tal fosse esse o intento do herdeiro a quem coubesse em sorte.

Os dois gavetões abarrotavam de papéis e pequenos objetos; chaves, moedas, velhas canetas, andavam perdidos no meio daquela papelada toda.

Logo à primeira impressão ressumava a inutilidade e desinteresse da maioria dos papéis engavetados. Ainda assim, observei papel a papel não fosse folha solta, de alguma significância, encontrar-se misturada com almanaques, seringadores, documentos de quitação, contas… E, de facto, havia por lá escrituras em forma de lei e outras que testemunhavam simples tratos entre vizinhos, mas de validade reconhecida na aldeia onde a palavra ainda tinha honra.

Um atado de folhas, em particular, cativou a minha atenção.

Se não aparentava ter qualquer interesse para os herdeiros, como confirmei mais tarde, já em mim instigou estranheza e curiosidade. Não num primeiro momento em que o seu mau estado, quase ilegível, me levou a descartá-lo, sem mais. Todavia, o facto de serem folhas de papel azul de trinta e cinco linhas conferia habitual importância e formalidade ao escrito.

Era um caderno de folhas presas com trincafio de sapateiro e os furos com aparência de terem sido feitos à sovela. Pelo término abruto e deixando uma frase a meio, deviam faltar algumas páginas no final; certamente por essa razão, não apresentava assinatura nem datação.

Uma mancha de gordura medalhava irregularmente as primeiras páginas. A tinta, decerto de preço módico como a utilizada na escola das primeiras letras, deveria ter sido azul, mas agora não passava de um borratado filamento róseo, quase impercetível.

A escrita era irregular e incerta denotando uma escolaridade mal cumprida ou há muito esquecida.

Hesitava se o degradado documento merecia um moroso trabalho de decifragem, quando julgo descobrir, no desmaiado borrão de tinta da folha que capeava o caderno, a palavra Regedor. Nesta página, aparentemente, apenas constava o título constituído por duas ou três palavras, redigido naquela letra maiúscula amaneirada, repleta de serifas dos primeiros anos de escola. Perdida, bem ao fundo da página, mal se percebe a palavra “cópia”, entre parênteses. No corpo do documento encontrei por diversas vezes o termo relatório; deduzi com isso, mas sem grandes certezas, que a capa seria Relatório do Regedor (cópia).

Não tinha conhecimento que o avô alguma vez tivesse sido Regedor, o que foi prontamente confirmado por uma tia que concluía a desocupação dos móveis da sala.

Que fazia ali, então, o relatório de um Regedor? Provavelmente, resposta a alguma queixa contra furto ou outro pequeno desmando, pensei, numa vaga tentativa de explicação do documento, embora o número de páginas indiciasse assunto com mais detença e importe.

Coloquei o caderno à parte para posterior análise, sem lhe ver enquadramento em qualquer dos montículos que havia formado: papéis sem evidente interesse, um pequeno lote de documentos a que reportei alguma utilidade e mereceriam decisão final do meu pai, por fim, os mais relevantes: registos de propriedade e contratos de renda.

E lá continuei a triagem, passando à segunda gaveta quase totalmente repleta de estampas de santos e sumárias brochuras religiosas.

A um canto, anichava-se um pequeno maço de cartas cuidadosamente enlaçadas por uma fina fita de seda azul-bebé. Sem saber o que fazer às cartas, rapidamente identificadas pelo remetente do subscrito como sendo do tio António, juntei-as ao relatório para mais tarde consultar meu pai sobre o destino a dar-lhes.

Regressado da casa do avô, coloco o relatório e as cartas em cima de um louceiro da sala e sento-me no patim a ler um livro, gastando tempo até à hora de almoço que não tardaria.

A refeição do meio-dia ia perdendo a sua designação centenar de jantar para dar lugar à moda trazida da cidade de se chamar almoço: o aldeão ainda lhe chamava jantar, mas nós, os civilizados, já a rotulávamos de almoço. Verdade que, mesmo no campo, com o crescente desuso de se trabalhar de sol a sol, deixava de haver sustentação para uma refeição a meio da manhã, o almoço; este apressou-se a usurpar o lugar ao jantar que, por sua vez, se apropria do tempo da ceia.

Passada a canícula da sesta, retomo os meus rotineiros passeios, procurando recanto fresco junto a curso de água, debaixo de umbrosa árvore, lá para as bandas da Lameirancha, sem mais me lembrar daqueles documentos deixados no móvel da sala.

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